segunda-feira, 24 de junho de 2013

Filhote de Barrabás - 12

Tenório fica receoso em mostrar o diabinho, assim, de cara, ao velho parceiro.  Aproveitando-se da duvidosa mediunidade de que Profetinha se gabava (e rendera-lhe o apelido), pergunta se é possível que alguém lhe tenta rogado uma maldição ou algum espírito tentou apossar-se de seu corpo, que respondeu com essa espécie de reação alérgica estilo Michael Jackson. "Duvido muito, meu comparsa, que eu saiba, esse tipo de coisa não existe". Então Café joga a isca: "E se for obra de Asmodeu, o coisa-ruim das profundezas da terra; com seu rabo de seta, cornos afiados, olhos sanguinolentos, língua bipartida e de tridente enferrujado em punho?". A eloquência do sarará branco, somada a um reflexo de luz alaranjada que não havia no ambiente em seus olhos, fez o queixo de Freitas cair na hora. O linguajar de Café sempre foi o ápice do coloquial semi-alfabetizado da região.  Ficou próximo de se borrar.

Filhote de Barrabás - 11

Ao entrar na casa, Fidélio não pode acreditar no que viu. Reconheceu Café prontamente, pois era um de seus melhores amigos, e nunca se enganaria diante daquela queixada protuberante típica dos mulatos da região. "Caralho, Tenório, tu tá com vitiligo, meu filho", desembestou a falar desesperado. "Puta merda, eu tinha uma namorada que ficou toda malhada, mas eu te vi ontem e você tá tostadinho ainda. Lembra da Cíntia, aquela que era coxa? Pois é, além de coxa a disgrama tinha a pele toda salpicada de branco...". Tenório só olhava incrédulo para o amigo. O diabinho tinha se refugiado no bolso da calça dele. "Freitas, cala boca e me ajuda caralho, essa merda não é vitiligo". O profetinha olhou para ele e disse: "Eu vou te ajudar, calma, calma, me diz o que você acha que é, meu filho", disse enquanto acariciava a fuça de Cafuringa.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Filhote de Barrabás - 10

Café logo se afeiçoa pelo curupira. Percebendo que o bicho adquirira uma leve coloração vermelha, instintivamente, oferece o rasgado do braço para o danado lamber. Quando mais comia, mais vermelho ficava. Suas orelhinhas, dantes enroladas, ficam eretas, se revelando umas coisinhas pontiagudas, quase fofinhas. Estava nu, mas não tinha qualquer indício de genitália. A amamentação aliviou Tenório, que relaxou pela primeira vez desde o pisão no prego. O silêncio foi quebrado por Cafuringa, que fazia um festelê danado pela chegada de Fidélio Freitas, vulgo "O Profetinha".

Filhote de Barrabás - 9

Tenório balança o pé consegue se desvincilhar do mini-diabo que já estava enchendo a pança. Ele voa e para sua sorte mergulha de novo na merda. Quase deu pra ver seu sorriso de satisfação. Mas menos de um segundo depois, lá estava ele mamando de novo, como uma besta demoníaca que tinha que fazer jus à fama de mensageiro da desgraça. Café então entende que o satãzinho certamente é o responsável por aquela assombrosa e agradável brancura que agora o vestia e, sem pensar muito, agarra o lazarento que começa a espernear e guinchar com sofreguidão. "Calma, calma, seu filho da puta", ele grita e, incrivelmente, o pequeno cramunhão obedece.

Filhote de Barrabás - 8

Café caí de bunda na lama e usa os calcanhares para se afastar, ainda sentado, da pequena criatura cor de prata fosca que parecia se espreguiçar no bauzinho. O bicho soltou um guincho e escalou para fora da arca, tossindo um pó prateado fininho. O diabinho olhou com desprezo para Tenório e mergulhou numa montanha de bosta de galinha que havia no canto do galinheiro. Foi a deixa para nosso herói investigar a arca dourada. Uns dobrões de ouro, um dedal antigo com pó de prata, um velho papel quebradiço, que falta fez a escola agora, uma caixinha de osso... Mas antes de abri-la, Café sente uma fisgada na sola do pé: o diabinho estava mamando sangue no furo purulento do prego.

Filhote de Barrabás - 7

As dores aliviam e Tenório resolve pensar no que é realmente importante: sua nova cútis. Ele estava branco, porra, e isso era maior que qualquer problema que surgisse. "Branco, branco", pensa sem conseguir entender. Resolve procurar vestígios de aguarrás ou tinner perto do galinheiro que poderiam ter causado a desgraça, mas não encontra nada. No entanto, algo brilha no meio do barro. Café começa a escavar e encontra uma pequena arca. Sem hesitar, ele tenta abri-la, mas não obtém sucesso. O branquelo então pega uma madeira do avariado galinheiro e bate no bauzinho com toda a sua força. A peça doirada se abre e dentro dela um pequeno cramunhão desperta.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Filhote de Barrabás - 6

Achou o telefone no bolso de uma bermuda estilo surfista com estampa de zebra. A dentada no braço vertia sangue e o pé continuava a doer. Sorte que a investida de Cafuringa contra o nariz rendera-lhe pouco mais que um arranhão, mas deu uma coceira incrível; na certa alguma química dos nabos de Nélida havia passado da boca do cachorro para o nariz de Café. "E aí, cabra?" diz a voz ao telefone. "Freitas, meu bom, tu não vai acreditar: tô branco, bicho". "Tomou um susto, foi, hômi?" completou o amigo. Tenório explica o que aconteceu e Freitas, ainda incrédulo, combina de passar na casa do amigo mais tarde.  Lavando as feridas, Café fica puto quando percebe que a ninhada de codorninhas havia escapado pelo quebrado do seu galinheiro. "Mas que dia do caralho! Vá tomar no chicote", vociferou enquanto esfregava vinagre nos machucados.

Filhote de Barrabás - 5

O animal fedia a formicida, porque tem uma relação nada saudável com a horta da vizinha, a boazuda da região. Cafuringa costumava arrancar rabanetes e trucidar os alface-baby que Nélida plantava e para isso ficava de quatro na calçada exibindo o traseiro na direção da rua. Cafuringa avança sobre Café com violência. Podia não parecer, já que o bicho não demonstrava, mas ele amava o dono protegê-lo de um invasor branquelo não era nada mais que a sua obrigação. "Cafu, caralho, é o Café". O cachorro já havia mordido o antebraço e quase arrancado o nariz do dono, mas ao ouvir a voz inconfundível do dono bradar, parou instantaneamente. Um pouco confuso, Cafuringa cheira o velho amigo e vai embora. Logo o celular de Tenório começa a tocar no meio da bagunça e ajuda o jovem fantasma a encontrar o aparelho.

Filhote de Barrabás - 4

Além da novidade de ser branco como a neblina, uma televisão ligada em outro cômodo chiava alto fora de sintonia, uma criança gritava loucamente no barraco ao lado, um carro de som no beco anunciava roupas íntimas a R$ 2,50 no volume máximo. Tudo aquilo desnorteou Tenório, que mal terminou de mijar e já foi guardando a vara (que parecia não lhe pertencer) nas calças. Virou-se rapidamente para procurar seu telefone celular. Enquanto chafurdava na bagunça do cômodo, Cafuringa, seu fiel vira-latas, entra pela porta do quartinho e, antes que pudesse farejá-lo, tenta abocanhar a estranha figura albina que mergulhava numa montanha de roupas-sujas, papelão e pacotes de salgadinhos.

Filhote de Barrabás - 3

À medida que passa a mão no resto de seu corpo, toda a sua pele vai descolorindo. Tenório esquece a dor que sentia por causa do prego e de repente está todo branco. Sai correndo e vai ao lavabo que chamava de banheiro e se olha no caco de espelho onde costumava aparar a barba às sextas-feiras. Seu rosto estava malhado como a Tetê, vaca que reconhecia praticamente como uma irmã, tamanho o carinho de sua mãe, Joseva, pelo animal. Não podia acreditar no que via, por isso esfregou as mãos no rosto e se viu com dois anéis brancos em volta dos olhos. E continuou até ver que tinha virado outra pessoal. Sentiu vontade de mijar e tirou o pau pra fora sem pensar muito. Logo notou que o velho amigo também estava empalidecido. "Macunaíma...", pensou enquanto esvaziava a bexiga.

Filhote de Barrabás - 2

Café fica horrorizado ao perceber a facilidade com que sua pele estava se soltando. Quando chegou ao tornozelo, lembrou de como debochava de Gracindo, seu irmão, sempre que voltavam das viagens à sombria prainha onde seus pais mantinham um modestíssimo chalé. Sempre que havia sol, Gracindo, dono de uma tez muito branca, se tornava um verdadeiro pimentão, enquanto a pele parda de Café sequer ardia. Assim que o irmão começava a descascar, Tenório sempre o comparava a uma Cotiara, serpente da região, na troca de peles. Apesar da preocupação com sua cútis, a lembrança o fez soltar um riso gostoso, que foi um misto de nostalgia e saudade.

Filhote de Barrabás - 1

"Ui, ui", Tenório grita quando pisa em um enorme prego enferrujado. O metal, que já estava todo corroído pelo tempo, penetrou um centímetro no pé do infeliz. Tenório corre até o tanque e deixa a água cair sobre a ferida. O sangue e o barro das pernas se misturam e uma água suja escorre. No entanto, Tenório, conhecido como Café por conta da pele moreno clara, percebe que não é só o barro no jardim onde tentava consertar o galinheiro que está se desgrudando de seu corpo. A pele de Tenório vai se descolorindo, descolorindo, até ficar branquinha da silva, e o café virar leite.

terça-feira, 11 de junho de 2013

50

 A porta se abre rangendo e o pobre diabo se congela. Ele leva a mão ao bolso à procura da navalha gelada. Talvez a única companheira nessa jornada apesar do curto relacionamento. Sua mente acelera e o peito arrefece. A luz do sol invade o ambiente e faz Carlos ficar tonto diante da imagem em contra-luz. "Cheguei", diz a imagem envolta no dourado da tarde de outono. É Chico, Chico e seus dentões de tecla de piano. Ele olha dom desdém na direção de Carlos que prontamente o reconhece e sorri mais uma vez. Está fumando o tempo todo e de camiseta larga. Ele observa profundamente o POBRE DIABO pela última vez e diz: "fiz essa música pra você":

No palco, na praça, no circo, num banco de jardim...

Mas o que é isso?, Carlos pensa. De repente, num estrondo, Eusébio, Clodoalda, Gerson, o urubu, a mulata maritaca esclerosada, Éder, o caminhoneiro bigodudo Vicente, Vilma do bar, Januária, Éder, Vânia, o avestruz, Jaci, Rita Talarica, Josias, Vilson, Primo da Vilma, Altair, Catzo, o gato preto, Heitor, Bilica, Abel e Zélio Cancro, entram pela porta.

O primeiro a começar a cantar é Vicente: Correndo no escuro, pichado no muro, você vai saber de mim.

O som de orquestra surge em crescendo e uma revoada de pássaros multicoloridos invade a sala. Carlos dá as mãos para Zélio e para Gérson e, em uníssono, todos seguem Vicente:

Mambembe, cigano
Debaixo da ponte
Cantando
Por baixo da terra
Cantando
Na boca do povo
Cantando
Mendigo, malandro, muleque, mulambo bem ou mal
Cantando
Escravo fugido, um louco varrido
Vou fazer meu festival
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte
Cantando
Por baixo da terra
Cantando
Na boca do povo
Cantando
Poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu
Cantando
Dormindo na estrada, no nada, no nada
E esse mundo é todo meu
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte
Cantando
Por baixo da terra
Cantando
Na boca do povo
Cantando


FIM

49

Enxaguou a boca com um resto de desinfetante vencido que por ali estava, respirou fundo e pensou: "é agora" - o cheiro o fez lembrar de Gérson, o filho de ariranha preferiu ficar no bar a ajudá-lo em sua busca. Tentando não transparecer seu nervosismo, saiu do banheirinho sorrindo e puxou uma cadeira. Confrontaria Pedro Juan com palavras antes de passar-lhe a lâmina enferrujada na goela, dando lhe um sorriso de orelha a orelha como presente pré-morte. Mas o velho abutre ficou impassível às perguntas estranhas e sem muita objetividade de Carlos. Enquanto citava todos os personagens de seu périplo, é interrompido por batidas na porta. Que assombração poderia ser? Um novo personagem na trama ou algum velho conhecido? Seria Papa Camélio, seu desaparecido pai biológico ou Josias, seu finado e amado pai adotivo, erguido de sua cova no campo de girassóis, amante de Clodoalda?

segunda-feira, 10 de junho de 2013

48

(( a não continuidade dessa história se deu graças ao fato de o texto abaixo nunca ter sido devidamente numerado, causando grande confusão nesse que vos escreve ))

Blaaaarg, fez-se ouvir o jato que nascia no intestino de Carlos e atravessava seu corpo para depois banhar a casa de Galato. Este, incólume diante da cena, nada fez senão observar a cena se repetir três vezes. Estava acostumado com a podridão, aquilo era sua vida e era dessa energia que ele se alimentava. Gostava de sentir o cheiro daquilo tudo. Pedro Juan fumava continuamente e às vezes dava a impressão que vomitaria também. O pobre diabo então se recompôs e perguntou se poderia usar o banheiro, lavar um pouco o rosto. Quando chegou no banheiro, Carlos se olhou no espelho e como há muitos anos não fazia, prestou atenção em seu rosto. Lembrou da infância, do velho pai Camélio - "por onde andará papai?" -, enquanto sentia o gosto ácido do vômito corroendo a traquéia. Notou uma navalha sobre a pia, enfiou-a no bolso e virou-se na direção da porta. Estava na hora de mostrar que ele até podia ser pobre, mas que estava disposto até a matar para não morrer com um diabo.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

A história que PJ narrou era cheia de horror, perversidade e uma boa dose de putaria. Mas Carlos estava mesmo querendo saber o que Galato tinha a contar.

E assim, o fidalgo da vala narra sua busca na selva pelos responsáveis pela surra. Quando descobriu que eram seus patrões do terreiro, ficou confuso, aquela desova ia contra aquilo pelo o que ele era pago pra fazer. "Jamais deixe sangue comum pernoitar na vala" essa era a número um das duas regras básicas que Pai Inocêncio de Sete Gangas lhe passara ao contratá-lo.

Porém, o desenrolar da coisa foi muito mais macabro. Quando Eusébio procurou Carlos pela tarde, já estava mancomunado com Inocêncio, pois o crioulo, medroso que só, havia jogado toda a culpa sobre o pobre diabo. O objetivo do negão seria lhe rogar uma maldição braba enviada pelo Gangas. Daí o saco de cabeças de pombos que carregava. O que Zezé não esperava era o compadrio de Carlos para com o proprietário do Galo Fêmea. Éder é um grande feiticeiro da Santeria Cubana, desafeto e maior inimigo do Gangas, fato fez Eusébio borrar as enormes celouras.

Claro que ele não era cético e todo aquele tamanhão escondia uma alma fraca e incapaz de se relacionar com humanos, só com seus amados pássaros. Foram os ferros incandescentes que Éder ofereceu para Ogum que afastaram Eusébio, que usou o nem tão raro saíra-sete-cores com uma desculpa mal pensada. Carlos esteve sempre muito protegido. Mas desta forma, por estar marcado para morrer pelo Gangas, sim, sua carcaça poderia apodrecer na vala.

Foi Pedro Juan que, espalhando brasas em Panambu, noticiou a morte do potro endiabrado que havia se esbaldado com ele na noite anterior. Quando soube, Abel ordenou que Bilica e os outros procurassem seu cadáver, pois Abel julgava a vala como um fim indigno para qualquer ser humano. Abel era outro que Inocêncio desejava comeria os rins.

Quando Galato silenciou, Carlos percebeu a satisfação nos olhos e lábios de Pedro Juan, o velho menestrel saboreava cada passagem da desgraça do Pobre Diabo como quem saboreia um faisão assado na primeira hora da madrugada. Toda essa confusão teria o dedo do velho escrevinhador? Teria aquela história sido escrita e todos agora eram peças de uma enorme encenação? Carlos sentiu-se mal com a situação e percebeu que ia vomitar.


46

"Quem te jogou na vala foi um...". Um estampido fora da casa fez Galato silenciar. Uma águia muito escura pousou na janela. Logo depois parece que o mundo congelou. A única coisa que se ouvia era um arrastar de perna sobre o cascalho misturado com areia e ossos de pássaro. O chiado foi crescendo até que a porta da cabana de Galato se abriu levemente. Era óbvio que Carlos finalmente estava diante do desgraçado que tornou sua vida um inferno ainda mais abstrato em relação ao que estava acostumado. Primeiro achou que tratava-se de Vilson, o namorado da Clodô, mas logo percebeu que estava diante de Pedro Juan, que era famoso na região por escrever barbaridades e vender nas esquinas ou em frente ao parquinho de diversões no sábado à noite. Pedro Juan pediu licença e entrou. Cumprimentou Galato e pediu um trago de conhaque antes de sentar. Estava com a boca seca e disse virando-se para Carlos: "Você vê isso aqui na minha perna?". Carlos olhou e percebeu um corte profundo, como o de uma machado na canela branca e seca do homem. "O que é que tem?" "Então não se lembra mesmo, né, seu animal?" "Zero!" "Não se lembra que ontem eu pedi que você servisse de inspiração para uma porra de uma história que eu estou escrevendo e que você prometeu fazer tudo que eu pedisse em troca de uns tostões?". Carlos realmente não se lembrava que deveria ter enchido a cara até que sua alma saísse do corpo e ainda ganharia algum em troca, o problema é que tinha combinado quase a mesma coisa com Eusébio, por isso abandonou o gigante. "Aí bem na hora que eu te trazia para o terreno da desova, onde eu queria imaginar uma passagem, você me mordeu na perna e desceu correndo do carro. Eu fui atrás, mas os macumbeiros apareceram na hora para jogar uma outra carcaça e você gritou incoerências. Eles te deram uma surra com os ossos do cadáver e você acabou no fundo do buraco. Eu me mandei, cheguei em casa e comecei a escrever...".

domingo, 2 de agosto de 2009

45

"Arre! Assombrando meu ganha pão novamente, seu cara de caralho!", disse o caipira rindo, enquanto Carlos se virava. Galato era um caboclo velho de pele escura e voz mole. Espantou-se pela sobrevivencia do pobre diabo e o convidou a sua casa, para um café com bolinhos. "Alguém lá em cima gosta de você, foi uma surra e tanto". Sentados em tocos de madeira na pocilga fedorenta de Galato, deliciaram-se com autenticos bolinhos de pombo-selvagem com castanha de barú. O capiau contou que cruzou com Carlos descendo do carro de Bilica e na volta de seu compromisso viu sua carcaça rolando vala a dentro e uns vultos se ocultando na mata. Avisou Abel, pois se Bilica lhe deu uma carona amigável, deveria ser afeto de Panambu. Galato explicou que era contratado do Gangas e aquelas carcaças eram restos de sacríficios humanos - era o segurança daquele iml a céu aberto. Contou que por pertencer às entidades, aquela vala não podia receber cadáveres comuns. Seu trabalho era somente este: Impedir que sangue comum contamine os outros e também metralhar urubus, coisa que fazia com maestria. Quando viu que alguém havia desovado o pobre diabo, ficou temeroso e buscou os vultos na mata pela madrugada toda. "E você encontrou quem me desovou?" Assim que o caboclo confirmou que sim, Carlos gelou, se dando conta que finalmente saberia.

44

Uma coisa não encaixava, porém. Carlos queria saber quem o jogara na vala, mas Abel não sabia ou não queria responder. Então como ele mandara os travecos à vala? O novo líder da vilinha disse que a dica fora dada por um capiau da região, um tal de Galato. Ele tinha uma casinha perto do buraco e telefonou no celular de Abel quando viu a movimentação na madrugada. O pulmão de Carlos chiou. Pediu como favor que o líder ordanasse que um de seus lacaios o levasse de volta ao começo da história, ao que foi prontamente atendido pelo filho pródigo de Clodô. Bilica ligou o gurgelzinho e Carlos entrou no banco de passageiro. Deram risada de tudo que acontecerá e ficaram felizes pelo fato de tudo ter entrado nos eixos. O amigo de infância do pobre diabo dissertou sobre as beneces de se trabalhar na vila e de como gostava daquela vida. Carlos agradeceu e desejou toda a sorte para o monstrengo e desceu do carro, ali, bem perto do inferno. Carlos estava leve, bem limpo, com fome novamente. Olhou uma fileira de formiguinhas que se empenhava em transportar uma porção de migalhas e plantinhas, sabe-se lá pra onde. Ficou hipnotizado por alguns instantes até que sentiu nas costas um metal gelado. Era a espingarda de Galato.

terça-feira, 12 de maio de 2009

43

Carlos estava confuso. Então o monstruoso líder que tanto maldiziam em sua vila não passava de um traveco fêmea, que apesar de muito feio, era perfumado e de fala doce? Lembrou-se de Gerson, que disse só tomar banho com desinfetante depois que resvalou no belzebu por engano.  Dona Vilma foi outra: "Jamais pise em Panambu sem ser convidado, Altair se perdeu por aquelas bandas e o líder quase lhe arranca as gônadas!". "Então não se lembra de nada? Deixa eu lhe contar". Ainda dentro d´água, Carlos relaxou e o medo foi embora.  Abel, que se apresentou como líder, começou sua narrativa. "Vou resumir. O senhor chegou aqui, louco da cabeça, badernando os domínios de Zélio...". Neste momento, o nome lhe foi familiar, Zélio Cancro, o líder de Pau no Cu, como esquecera? Abel continuou. "Pois bem, você azucrinou por todos os lados, enfurencendo nosso líder que mandou Bilica e os outros atrás de você. Depois de pego e entregue, Cancro se afeiçoou pela sua triste figura e viu em você, o que ele era nos anos 40." Abel perdeu os traços femininos e se enfureceu: "Zélio quis você para ele e isso eu não pude admitir! Eu, Abel, a bela do lixo, primeira dama do bueiro, que aguentei 15 anos esperando Zélio morrer, aguentando suas sandices e desejos hediondos, ser trocado por um filho da puta bebum que surge do nada, ah não!" Assim, Carlos soube que Abel degolara Zélio e assumira o puteiro todo. Logo depois, liberou Carlos, pedindo a Bilica que o deixasse na estrada.
"Ó!" disse Carlos, notando um fotinho de Clodô em um pequeno porta-retrato ao lado de um vasinho de flores. "Espero que não diga à mamãe onde estou, pois para ela, moro em Paris e sou empresário". 

segunda-feira, 11 de maio de 2009

42

O chalé era incrivelmente bem conservado. A varandinha de entrada era recheada de flores e samambaias, tudo muito bonito. Bilica disse que o chefe estava esperando Carlos entrar, desacompanhado. O pobre diabo caminhou sem cerimônia até a porta e girou a maçaneta. "Venha, pode se lavar", escutou. Não conseguiu identificar a origem da voz. Havia uma pequena queda d'água na sala que se estendia até um belíssimo jardim ao fundo, onde estava sentado o líder. Carlos não acreditou em si mesmo quando despiu-se e entrou no laguinho artificial. Estava realmente imundo, fedorento, um verdadeiro filho da puta. O líder então lavantou e aproximou-se lentamente de nosso herói. Foi só aí que tornou-se possível descrevê-lo: era um homem branco, usava uma peruca negra e brilhosa como as asas de um corvo. Estava semi nu, como todos de sua gangue. Só usava um saiote e tinha os peitos plastificados à mostra. Carlos se lavou rapidamente e esperou receber alguma ordem. Não, não achava que transformaria-se num escravo sexual da aberração, mas não tinha nada para dizer. Quando a besta de pronunciou, foi uma surpresa completa para Carlos: "Não se preocupe, a Clodoalda está bem". Carlos não acreditou: "Como você sabe? O que é você? Como você transformou o Bilica nesse animal?". O demônio nada respondeu e deu as costas sorrindo. "Não se preocupe, você não vai sofrer, tenho planos mais interessantes para um belo potro como você..."

quinta-feira, 30 de abril de 2009

41

Mastigando os pensamentos, o jovem diabo chegou a certeza de que se tratava de um completo imbecil. Em menos de 48 horas havia selado vários desfechos para sua existencia maldita. Aceitou sua condição, não pensou em fugir, pulando do automóvel em movimento. Simplesmente desistiu. Já imaginou o líder de Panambu usando seu corpo viril como cobaia para alterações genéticas, se imaginou com um cacete costurado na testa e uma boceta no sovaco, riu sozinho na caçamba. Ainda faltavam algumas horas para o pôr-do-sol e a medida que se aproximavam da Vila Pau no Cu, o ar foi se tornando denso e espesso, uma umidade violenta tomou conta do ambiente. "Só pode ser esperma" pensou Carlos. Ao entrarem nos dominios da Vila, notou o magrelo Vânia discutindo com um enorme japonês vestido com roupas colegiais femininas. O rapagote só notou o pobre diabo quando a caminhonete já estava longe, ficou um tanto encafifado. Por debaixo de camadas de silicone industrial e uma peruca ruiva, Bilica grunhe com dificuldade: "Carlinhos, infelizmente tenho que te levar ao líder. Profanaste nossa Vila e aqui se faz, aqui se paga". Pronto, finalmente teria seu veredito. Chegaram ao chalé onde a temível criatura decretaria sua sentença. 

quarta-feira, 29 de abril de 2009

40

Claro que tudo ali não passou de uma alucinação. Carlos não é e nunca será um assassino. Quando acordou percebeu que estava sentindo uma forte pontada no traseiro, onde um quarto traveco, que estava escondido, lhe atingira com um dardo lançado por uma zarabatana. A droga fez o diabo alucinar novamente, como quando banhou-se na tina de Vilma. Novamente sonhou com um indivíduo frio, capaz de realizar qualquer absurdo. Era o inconsciente de Carlos se manifestando, revelando o homem que, lá no fundo, ele sempre almejou ser. Vez em quando dava uns pescoções em Gérson ou algum corno que lhe cruzava o caminho, mas matar? Jamé! Percebeu que estava solto, nem os animais siliconados temiam ele. De certa forma era um alívio, pois imaginou que o tal líder - e era para ele que os lacaios estavam levando Carlos na caminhoneta - deixasse-o partir quando percebesse que era inofensivo como uma pomba gorda. Quando retomou completamente a sanidade, se é que isso era possível àquela altura, ele até reconheceu um dos demônios. Era um velho amigo, o Bilica, que jogava futebol com ele na infância e ficou feliz por ele, pois parecia gostar da posição que se encontrava. O julgamento se aproximava, mas Carlos sacolejava no automóvel com a mente vazia.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

39

Correr não seria uma boa opção, se por ventura conseguisse fugir, o trio voltaria à Panambu e o líder ordenaria uma busca intensa, recrutando seus piores mentecaptos para a busca por Carlos. Chegara a hora de lutar. Desarmado e nu, caminhou de costas observando o solo em busca de algo que poderia ferir os veadões. De faca em punho, o coroa de camisolão gritava que seria ele quem tiraria a alma do pobre diabo. O travesti investiu pesado contra a carcaça de Carlos, que sentiu a lamina penetrar pelo sovaco e assim, urrou. Ambos afundam um tanto na carne podre e Carlos alcança um crânio, que desfere com precisão no rosto do infeliz, que cai desacordado. "Um a menos" pensou, sem ligar para a tripa humana cheia de fezes que estava enrroscada em tornozelo e ignorou também seu sovaco, que vertia sangue. Ao abaixar para tomar a faca do gordo, percebe a sombra de um deles chegando por trás, era o cara siliconada. Vira-se com rapidez e ódio. A lâmina assovia e entra pelo umbigo do infeliz, resultando num enorme talho. Aplica um cabeçada direto no corte, derrubando a criatura, que indefesa, chora pela sua vida. "Não é hora para piedade" gritou o diabo ao plantar um fêmur lascado goela adentro do cara de cão. Quando procura o puto da tanga, percebe o mesmo correndo já quase fora da vala. "Alcançar, interrogar e matar!", pensou. 

38

O pobre diabo sentiu medo verdadeiro pela primeira vez no dia. Não entendia como o universo conspirara para que retornasse àquela pocilga a céu aberto e, de quebra, dava de cara com três bestas do apocalipse, possivelmente os responsáveis por sua quase morte. Carlos poderia ir embora, mas a curiosidade persistia em suas idéias. "O que faziam ali? Será que queriam certificar-se que meu corpo já estava em processo de composição?", pensou. Podia atacá-los e esbofeteá-los quando virassem para ir embora, mas não tinha forças para tanto. Carlos então resolveu agir com prudência, tentar conversar calmamente com os filhos de belzebu. Não lembrava-se de ter visto pessoas tão horrorosas em toda a sua vida. Saiu dos arbustos e foi logo notado pelo traveco de tanga. O fedor era insuportável. Alguns miolos e tripas escapavam de alguns corpos e era possível sentir todas aquelas almas rodeando seu corpo. "Seu filho-da-puta", disse o deformado ao mesmo tempo em que todos olharam para Carlos, que não disse nada. "Você não está morto?", a besta selvagem falava com certo sotaque estrangeiro. Devia ser um gringo que se veio ao Brasil a passeio e se apaixonou e nunca mais foi embora. Nosso herói permaneceu mudo, não conseguia falar merda nenhuma. Os outros dois sacaram facas e apontaram para o bucho de Carlos. Foi só aí que ele olhou com calma para eles: um cafuzo que possivelmente aplicara silicone no rosto e parecia uma anta bípede e um velho careca, cheio de cicatrizes ao longo do corpo que vestia somente um camisolão.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

37

Carlos não sabia ao certo o que lhe motivara a ajudar a orca, mas continuou correndo e logo avistou o tapete amarelo radiante no fim da estrada. Nunca deu muita bola para aquelas flores, o sol estava forte e precisou diminuir o passo. Andando rápido, foi acometido por um odor inacreditável. Olhou para a beira da estrada e notou um enorme poça de merda amarela borrifada no acostamento, na hora não se deu conta que horas antes, aquela massaroca fétida habitava suas entranhas. Nauseado, voltou a correr e chegou ao campo de girassóis. Desesperado, zigzagueou por entre as milhares de flores procurando Jaci. Quando estava para sair pela outra extremidade do campo, ouviu gemidos e sussuros. De butuca, espichou a vista até encontrar a origem dos gritinhos. Foi então que descobriu porque Jaci nunca lhe dera bola, ela curtia os esquisitos. Estava fornicando com Altair, justo o anormal! "Vai entender essas vadias!" Teve que interromper o coito do mondrongo e explicou a situação da pobre Clodoalda. Sentiu nojo, aquela colossal morena sentando seminua na motoca de Altair e indo embora, com aquele cu empinado e desesperada.
Nisso, lembrou-se que havia castigado a estrada e aquela merda era de sua autoria - estava próximo da vala. Resolveu adentrar um tantinho na mata, procurar alguma resposta, talvez.
Chegando no bueiro de satanás, viu que três pessoas caminhavam cuidadosamente entre as carcaças, se muquiou nuns arbutos e observou a movimentação do elementos. Após uns minutos percebeu, eram travecos incrivelmente feios. Um deles usava apenas uma tanga, com peitos siliconados muito tortos e a barba por fazer.

quarta-feira, 11 de março de 2009

36

Quando preparava-se para violar a donzela, um grito veio da rua. Era como se estivessem torturando um animal. Tratava-se de uma mulher e o instinto fez Carlos correr, mesmo trajando apenas um shorts que usava para dormir, para fora do apartamento. Não acreditou quando viu Clodoalda cambaleando até desmaiar no meio-fio. O estrondo abalou o cascalho e fez Carlos desesperar-se. Uma rachadura, que já não se sabia se sempre estivera lá ou se era fruto da hecatombe, encontrava-se embaixo do corpo que, mesmo vivo, jazia sobre o concreto. Era preciso que alguém avisasse Jaci e Carlos, sem pensar, disparou semi nu rumo à barraquinha da Clodô, onde esperava encontrar a herdeira da magnifica criatura que agora parecia estar lutando contra a Dona Morte. Carlos imaginava que só ela poderia saber como proceder naquela situação, já que um guindaste para levá-la ao hospital estava fora de questão. Ao chegar na charneca de Clodô, Carlos foi avisado que Jaci estava longe, tinha ido ao campo colher girassóis. Carlos continuou no seu périplo, corria como o maior dos bastardos e não percebia que a cada passo aproximava-se mais e mais do terreno baldio onde acordou naquele dia. E estava com os mesmos trajes diminutos.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

35

Carlos estava tenso, repentinamente se apaixonou pela pequena ave. Mas se a roubasse estaria fodido ainda mais. O negro e o italiano começar a negociar. Eusébio alegou que Carlos era um imbecil e que seria impossível alguém possuir um Benedito, suando frio. Catzo ficou furioso com a mentira do desalmado, porém pagou 2 pavões para conhecer as aves de Eusébio. Carlos e Rita foram na bota, maravilhados com o zoologico particular do gigante. Apesar da primeira impressão, os colecionadores estavam se entendendo, puseram-se a matraquear sobre todo tipo de ave, como velhos companheiros. Mas o italiano era uma velha serpente, ofereceu o saíra, assim de graça e Eusébio engoliu o ovo. Assim que recebeu a ave, fez um sinal de jóia para Carlos, que enfim estava livre da dívida, porém encantado. Assim que o casal pele e osso estava longe, Eusébio levou o maquiavélico Catzo ao seu viveiro de Beneditos. Carlos e Rita surrupiaram uns pavões, quebrando seus pescoços e levando para o centro, venderiam ao açougueiro por uns merréis e seguiriam sua viagem à Panambu. Carlos ficou feliz, estava livre de Eusébio e Rita já não gritava como antes, se tornando uma boa companhia, ficou excitado pela primeira vez no dia. Ela topou e foram para o quartinho, Carlos ainda pensando no sete-cores.

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Ao chegarem em frente à propriedade de Eusébio um falcão, que repousa sobre a cerca de madeira que circunda a chacrinha, voou sobre os crisântemos que ornavam esta mesma cerca. Era uma ave adestrada que fora avisar Zezé do grupinho que chegara para visitá-lo. Não demorou cinco minutos até que o crioulo aparecesse com a ave no punho revestido por uma luva de borracha verde. Ele não ficou satisfeito ao ver Carlos, pois queria distância daquela praga endemoniada. No entanto, ao abrir o portão feito de galhos de árvores, o homem deparou-se com o saíra-sete-cores, que agora estava no ombro de Rita. Aqueles cores povoaram a mente do gigante, transformando-o em um menino. Sorriu e saltitou. Mas, antes que pudesse se manifestar, percebeu 0 caminhãozinho de Catzo estacionado logo atrás, recheado de pavões na caçamba em forma de gaiola. Foi aí que ele sentiu algo estranho no ar. "Afinal, o que vocês querem por aqui?", foi sua pergunta. A mesma foi respondida por Catzo: "Me piace molto un benedeto benedito" e abriu um sorriso. Eusébio nunca imaginou que aquele dia chegaria, que teria de compartilhar ao mundo a linhagem de papagaios benedito que criara nos últimos 20 anos.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

33

Carlos soltou uma lorota magnífica, e tirou da manga que Eusébio possuia o dado como extinto há mais de 20 anos, Picapau Benedito. E foi na mosca! Catzo berrou "Porca miséria! Uno Benedictus!". Carlos nunca tinha dava muita bola para as aves, mas jamais havia visto um saíra-sete-cores assim tão perto. O bichinho tinha a perna amarrada a um fio de pesca quase invisível preso a um enorme anel dourado no dedo cabeludo de Catzo. Era lindissímo, um misto de cores incríveis, parecia de mentira e assim que o pobre diabo esticou as pestanas pem próximas ao bicho, o mesmo se pos a cantar. Era mais um enfeitiçado pelo sete-cores. Iriam ao encontro de Eusébio. O velho estava enlouquecido. Sabia onde achar bons pavões, bastou uma rápida viagem até a charneca do Heitor, uns 30 quilometros dali. Lá, Catzo apelou, levou 6 casais de diferentes cores. Nem lembrava mais de Rita. Se contentaria apenas em ver o bicho e talvez com sorte, o levaria para casa. Na cachola de Carlos, saldaria sua dívida com Eusébio, afinal, estava levando um ricaço passarinheiro, 12 pavões e o sete-cores. O único temor que lhe restava: Seriam os habitantes da travecolândia, os desovadores de sua carcaça?

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A obviedade do escambo que se desenhava era tão evidente que Carlos se sentiu mal ao pensar nisso. A ideia é pedir a Rita que brincasse um pouquinho com o bastardo. Em troca o bastardo teria que lhe dar a bela ave. A puta de chofre concordou, pois tinha pra ela que sua missão na terra era ajudar aquele cão vadio. Pra ela, isso era amor. Quando abordaram o italiano, perceberam que a negociação não seria tão simples. Catzo queria pelo menos 4 horas de brincadeiras e, além disso, precisava saber o que Carlos faria com o saíra-sete-cores. Inocentemente o infeliz disse que daria a um gorila que atendia pelo nome de Eusébio, que era um comerciante de aves raras naquele pedaço. Rita estaria disposta a cumprir sua parte no acordo, mas a revelação de que o mameluco agia na região o fez ficar mais interessado em conhecê-lo. Catzo disse que daria o saíra se Carlos o contasse tudo sobre a espécie de Hulk brasileiro. "Posso dizer que o ponto fraco dele são os pavões", disse, como que se lembrando do sonho aterrorizador.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

31

Buscando as últimas gotas de dignidade que lhe restavam, uma única lágrima escorreu em seu rosto. Seria este um índicio de alma? Ou tratava-se mesmo de um pobre diabo? Que desalmado que é, chorar seria impossível. Desculpou-se com Rita e lhe abraçou. Voltariam à cidade e com aqueles tostões, pegariam um transporte para a vila Vizinha, a prodigiosa Vila Pau no Cu, onde constataria se era mesmo ele o autor das atrocidades que Rita havia dito. O vilarejo Panambu tinha o singelo apelido pois era o antro dos veados e travecos da região, um buraco escuro e fedendo à porra- onde tudo era permitido - talvez nem tudo, pois Carlos havia chocado até mesmo os despudorados travecos. Se o líder deles estivesse furioso, Carlos estaria realmente encrencado, não há entidade viva ou em espírito que não temesse aquela aberração. Chegando ao centro, de mãos dadas, o casal cruza com Catzo. O gordo logo reconhece Rita de outra cidade e fica olhando fixamente para a mulatinha. Carlos nota o sete-cores no ombro do carcamano e assim, parecem se encarar, mas cada um tinha o olho no que queria.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

30

Quando Carlos resolveu impedir que Rita começasse o seu trabalho no bigodudo, foi uma verdadeira tragédia. O homem levava uma garrucha na cinta e ameaçou atirar em sua cara. Rita, por outro lado, ficou muito feliz de vê-lo ali e o abraçou. O bigodudo atendia pelo nome de Vicente e era um caminhoneiro que fazia entregas na região e, vez em quando, elegia uma cidade para passar a noite. Ele fica puto com a alegria de Rita e resolve ir embora. "Vocês são dois diabos que se merecem", diz. A puta pouco se importa com os tostões que acabara de abrir mão e beija Carlos no rosto. Nosso herói resolve abrir o jogo e contar sua saga. Rita revela que ouvira falar que alguém, meio homem, meio bicho, havia azucrinado uma vila vizinha na noite passada. A puta imaginou que tratava-se de Carlos. As histórias variavam entre o abusurdo e a pornografia exacerbada. Carlos não podia acreditar que ele protagonizara tantas histórias bizarras e rebelou-se contra a puta, que o esbofeteou no rosto. Estava na hora de nosso herói chorar.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

29

Em paralelo aos espalhafatosos acontecimentos no dia de Carlos, chegava à cidade um novo personagem. Catzo era um velho carcamano que negociava de tudo, um tipo de mafioso moderno que passava pelas pobres cidades usurpando seus bens e mulheres. Já bastante velho e rodado, tinha um apreço especial por aquele maldito povoado. Seja pela quantidade de pássaros que lá habitavam ou pela virgem que certamente compraria, ambos por alguns trocados. Portanto, lá estava Catzo com seu sete-cores no ombro. Fazia 4 anos que não pisava lá, assim foi visitar a boa cozinha de Vilma e levar um presentinho para Altair, que parecia ser o único amolecer o coração de pedra do italiano. Extorquiu alguns pobres coitados, deu um pontapé num gato preto e espantou-se como em tão pouco tempo os pássaros estavam sumindo da região, não tinha nenhum conhecimento do trabalho de Eusébio.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

28

Os símbolos do sonho ainda eram uma incógnita. Não sabia se encarnava o satanás que se tornara na viagem astral ou se mantinha a devoção pela procrastinação. A necessidade de achar Rita, a puta, o saíra, ou de entender como fora desovado, àquela altura já havia lhe cansado. Sabia que isso era efeito da lavagem espiritual a que fora exposto. Ao descer a picada rumo ao centro, olhou para o céu e viu um belíssimo papagaio-de-cara-roxa, tão raro quanto a ave que buscava. O pássaro voou rapidamente e se meteu no meio de um pequeno bosque que circundava o caminho. Carlos não titubeou e engendrou-se na pequena floresta. Caminhou por uma trilha recheada de gerânios cheirosos e elicônias pontiagudas. A terra estava úmida e um perfume inundava o ar, causando uma agradável tontura em nosso herói. Avistou novamente o papagaio. Ele pousara sobre um enorme galho de uma gigantesca árvore. Não sabia ao certo o que o levara até ali, mas era um alívio se comparado ao calor que fazia fora do bosque. Quando pensou em virar e ir embora, ouviu vozes se aproximando. Era Rita, e estava acompanhada de um bigodudo que, apesar de Carlos não se dar conta, era o mesmo caminhoneiro que o xingara enquanto cagava no meio-fio e, pelo jeito, ele iria utilizar os serviços da moçoila.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

27

Com um jorro de água quente no rosto, Altair desperta o desfalecido Carlos. O sonho havia sido tão real que podia jurar que a insólita passagem no cafofo de Eusébio era tão real e pertubadora que o banho de sabugueira perdera todo o efeito. Agradeceu por não ter de fato presenciado o pavão usando as partes íntimas do gigante como morada. Aceitou o sonho como premonitório e que senão se acertasse com Eusébio, o mal lhe cairia sobre a cabeça. Agradeceu Dona Vilma e seguiu sua missão, ainda atordoado. Primeiro procuraria o pássaro entre os mercadores, que vez em quando apareciam com uns animais silvestres. Se não tivesse sucesso, pagaria algum molequinho para entrar na mata atrás do bicho e se ainda sim não resolvesse, precisaria viajar algumas horas até uma cidade um pouco distante dali, onde com certeza encontraria o sete-cores.

26

Quando Carlos acordou ainda estava sob o efeito das plantas medicinais de Vilma. Eusébio estava vestindo apenas um macacão jeans e observava calmamente o pobre diabo - ou o que sobrara dele. Por incrível que pareça, Carlos gostou daquela situação, sentia uma certa tranquilidade. O fato é que seu o corpo já estava reestabelecido e seu rompante de Golias se deu no instante em que a vulnerabilidade se sua carapaça era patente. Era necessário um pouco de repouso e reflexão depois da lavagem de dona Vilma, mas como ela nada sabia da noite anterior, não se preocupou com o infeliz. Eusébio tinha planos audaciosos para Carlos. Iria engaiolá-lo junto aos animais que entregaria à noite para os pais de santo do Gangas e o deixaria a mercê das entidades. Enquanto isso o amarrara a uma cadeira. Sua tromba esfolada doia muito e foi aí que Carlos descobriu que Eusébio, apesar de abstêmio, também era cliente da Tia Januária. Ele entorna o conhaque caseiro sobre o enorme mastro e urra como a Conga, tornando insuportável o barulho dos pombos e galinhas se debatendo nas gaiolas de tanto medo. O pobre diabo sentia uma estranha paz, mas o relógio ainda marcava 12h30 e a tarde prometia ser infernal.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

25

O banho de Vilma foi realmente primoroso. Enquanto descia a pinguela que ligava o centro ao boteco, uma auto-confiança prodigiosa foi tomando conta do corpo de Carlos. O que antes se tratava de um reles diabo, a cada passo em direção ao calamitoso centrinho daquele buraco, ia se tornando num incrível satanás. Nessa explosão de confiança, nosso herói passa a agir como um predador descerebrado e resolve acertar as contas com Eusébio naquele momento. Se irritou com o negro e bradou para a cidade:
"Aquele edifício humano e sua obsessão por animais, pro inferno! Ele e seu passarinho colorido, esse crioulo vai ver!". Mas esse não era Carlos. Normalmente iria atrás do pássaro, cagando sua dignidade para se ver longe de problemas. Talvez algo saíra errado no banho de sabugueira, provavelmente seu corpo tenha ficado "aberto" e uma entidade enfurecida se apossou do verme.
E lá foi o pobre diabo, ao encontro de Eusébio. Foi entrando sem cerimônia no zoologico particular do passarinheiro. A medida que ia cruzando as centenas de gaiolas, os animais se arrepiavam e gritavam. Os espirítas acreditam na sensibilidade animal para com as entidades, vai saber. Depois de decifrar um labirinto de jaulas e pocilgas achou a casinha de Eusébio. Por uma fresta na janela, Carlos espreitou e se deparou com o enorme negro, de costas e nu, com sua bunda preta e peluda. Sentiu ainda mais ódio e nojo. Até mesmo uma alma livre de qualquer pudor como Carlos se assombrou com o que viu em seguida. Eusébio tinha um espécie de braço entre as pernas, um cacete tão enorme que não poderia ser humano e trazia um pavão branco empoleirado no membro. Berrando, o furioso diabo irrompe pela janela, assustando Eusébio e o bicho, que apertou a tora do negro com voracidade, arrancando uma lasca do couro da enorme jeba.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

24

Durante aqueles instantes alegres, o cérebro de Carlos viajou novamente para o terreno de desova. Conseguia olhar-se estirado no meio do sangue e da sujeira, como se fosse um espírito observando o corpo abandonado. "Vilma, a senhora prepara uma limpeza pra mim?", Carlos disse referindo-se à lavagem espiritual que a dona do bar realizava nos amigos. Filha de Obaluaiyê, ela tinha a receita para livrá-lo daquela lembrança cinzenta e desagradável e das pragas adquiridas. Vilma olhou fundo nos olhos de Carlos, soltou a fumaça do cigarro e ordenou que Altair preparasse uma tina com água quente, apesar do calor escaldante. Carlos despiu-se e entrou na pequena bacia para ganhar um banho de folhas de sabugueiro. Em transe, dona Vilma pediu que São Lázaro o livrasse das pestilências enquanto Altair o banhava com uma concha. Carlos saiu magnetizado, ganhou duas guias, uma cor de terra e outra preta, e foi-se embora.

23

O sol estava cozinhando seus miolos, que já não serviam para muita coisa na sombra, sob um calor desses então, jamais conseguiria pensar numa boa forma de continuar sua investigação. Era questão de honra descobrir como havia ido parar na vala. Resolveu passar no bar da Vilma, afinal, tinha 200 contos no bolso e só uma coxinha gordurenta no estômago. Depois procuraria Rita e o saíra de Eusébio. O bar ficava no ponto mais alto do centro, era muito agradável e servia bons frutos do mar. Vilma é uma senhora muito simpática, solteirona. Seu trauma foi ter se envolvido com um primo de sangue na adolescência e engravidado. Desde então nunca mais teve um homem ou qualquer tipo de relacionamento, só a doentia fixação pelo filho, Altair, que saiu mondrongo das idéias, mas é um ótimo garçom e faxineiro em seu boteco. Carlos foi à forra. Pediu mariscos, peixe frito e um mexilhãozinho empanado, além de uma boa cerveja, pois a carcaça já pedia álcool. Se divertiu com as maluquices de Altair, suas respostas desconexas e dancinhas abobadas. Enfim encontrou um pouco de paz, dividiu um conhaque com Vilma, que nada sabia de sua epopéia do dia anterior. Estava renovado e até mesmo um pouco feliz.

22

O calor já estava insuportável e Carlos lembrou-se que ainda havia uma dívida a saldar com Eusébio: precisava encontrar um saíra-sete-cores. Clodoalda ficou muito feliz ao ver Carlos. Tinha grande carinho pelo jovem diabo, pois era muito amiga de seu finado pai, Josias. Corre à boca pequena que o homem tinha grande apreço pela enorme criatura, inclusive revelando em seu leito de morte que ela fora o amor de sua vida. Desculpou-se pelo que seu namorado, Vilson, havia feito na noite passada. Carlos explicou que não se importava com isso, pois sequer lembra-se de qualquer coisa. "Eu não tenho memória de elefante", disse preparando o terreno para o prêmio que aquela altura sentia que estava em suas mãos. "É, meu filho, você ganhou 200 contos". Carlos abriu um sorriso. Era a primeira notícia boa que recebera desde sabe-se lá quando. Perguntou por Jaci, pois queria queimar os tostões com ela mais tarde, mas a mãe não sabia onde ela poderia estar a esta hora. Carlos limpa o suor do rosto e resolve continuar seu calvário. Pensou em procurar Eusébio e oferecer 50 pacotes ao invés do pássaro.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

21

O balconista contou que no meio da tarde pintou uma mulatinha no boteco, de língua afiada e boquete idem. Recém chegada na cidade, a jovem meretriz foi direto ao piolhento Galo Fêmea, antro dos bêbados e despudorados da cidade. Éder, por sua posição hierárquica superior - afinal, era ele quem servia a bebida -, foi o primeiro a usar os encantos da petiz. Logo após o servicinho atrás do balcão, teve a grande sacada: "Eu mando a puta encontrar o Carlos, que derrama o leite nela e vem reabastecer aqui". Sempre após uma fornicada, Carlos ia ao bar com uma sede sem fim e enxugava madrugada adentro romanceando como havia sido a foda. Vez em quando ele enrabava um veado, mas isso ele não contava. Só que ao invés de chegar com mais uma história de suas escatológicas transas, Carlos apareceu com o singelo e enorme Eusébio. Éder, preferiu não se meter, já que o abstêmio criador de animais estava bancando rum e dando orientações de como se portar no Gangas. A puta foi até os amigos no coreto e lá foi uma festa. Cantaram, dançaram, se esfregaram um pouco e rabiscaram poemas chulos, do calibre de "rita talarica, devolva meu coração". Mas a mulatinha, vinda do interior e um tanto bronca, se encantou pelo pobre diabo e ficou furiosa quando o mesmo se picou com Eusébio em troca de bebida. "Fiquei lá com ela, que matraqueava como uma louca, só querendo saber que horas você voltava, foi aí que ofereci 5 merréis pra ela ir te procurar e pra me livrar da louca". Mas ninguem mais foi visto, Carlos ou Rita. Despede-se dos amigos e segue para o beco das putas, mas não custava nada passar na banca da Clodô, conferir o resultado do bicho e quem sabe Jaci estaria por lá com seus peitões.

20

O telefone era de Vânia que, a despeito do nome, era um rapazote magro e sardento que vez ou outra vinha à cidade em busca de diversão (leia-se: bebida barata e putas aos montes). Quando Carlos se anunciou, Vânia ficou feliz da vida. Nosso herói fez-se de avestruz e esperou a história se desenrolar antes de qualquer manifestação. Ficou sabendo da noitada na casa da mesma Clodoalda, que lhe empurrara o bilhete com a irônica dezena 48 do elefante. Quem organizara a bagunça fora a belíssima filha da orca, Jaci. Eles ficaram lá até perto da meia-noite, depois que Carlos abandonou Eusébio com a bicharada. Vânia ainda disse que os dois divertiam-se como nunca até o momento em que o namorado da Clodô chegou no barraco e suspendeu o consumo da birita que lhe pertencia. Carlos, que estava tentando aplicar o sapeca iá-íá em Jaci ficou na mão e disse que voltaria à labuta. Depois disso, Vânia não o viu mais... Desligou o telefone ainda mais apavorado com sua falta de memória enquanto Gérson levantou e gritou: "e a puta que eu paguei pra te encontrar?!". Ele estava falando da piranha que abordou Carlos ao lado da vala, e era a mesma que inspirara o nefasto poema na pracinha.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

19

Estupefato, nosso herói demorou a digerir que tão facilmente havia se livrado da pena com Eusébio e por tabela com os pais de santo. Declarou a Éder não crer em tamanha sorte, mas o amigo o convenceu de que Eusébio era sábio e de palavra. O compadre, em comemoração ofereceu uma boa cana envelheciada ao ressuscitado Carlos, que recusou. Para reconstituir sua noitada fatídica era necessário estar sóbrio. A investigação, porém, estava apenas começando. Já sabe que bebeu a tarde inteira, foi ao Galo Fêmea e deveria ter ido ao Gangas com Eusébio. Onde foi parar? Quem seria a mulata esquizofrênica que o abordou na vala? Quem o espancou até ser dado como morto? Muitas perguntas sem respostas. Olhou novamente o poema, era horrível. O papel que ainda não havia lido era uma aposta no jogo do bicho da banquinha da Clodoalda, uma gorda funesta de 220 quilos. Por fim, o papel com o telefone. Vai até o aparelho no balcão do bar e disca os oito números, rezando para que não seja algum barrabás que atenda. Enquanto chama, ele engole a "sebosinha", nome carinhoso dado à coxinha do Galo Fêmea, em duas dentadas. Estava deliciosa.

18

Eusébio estava condescendente até aquele instante, mas o jogo não demoraria a virar. O crioulo, que pouco se importava se um preto velho lançasse-lhe uma maldição cavernosa, pois era cético como um tatu, estava pronto para decretar uma dívida eterna de Carlos para com ele, mas quando Éder abriu o bico e começou a falar da noite regada a rum e cachaça, Zezé - e essa era a forma como as mulheres o chamavam -, percebeu a ligação íntima dos dois, o compadrio, pois não é bobo. Trata-se de uma amizade de longa data, alicerçada por centenas de garrafas vazias. Carlos era o principal cliente do Galo Fêmea. Ali é seu reduto, seu lar. A simbólica morte da noite anterior nada mais era que o resultado sintomático de uma relação doentia. Aquele cenário deu asco a Eusébio. Pensou nas araras e jabutis que tanto amava e ficou enojado de ter financiado bebida àquela alma desgraçada. "Me arrume um saíra-sete-cores que estamos conversados. Com os pais de santo eu me viro...", disse o gigante, interrompendo o testemunho de Éder que falava ao mesmo tempo em que servia uma coxinha a Carlos.

17

"Gersa! Caralho! O que aconteceu? Acordei numa vala, todo surrado!" Gérson confirmou que haviam bebido, e muito, no coreto da pracinha. Nisso, nosso herói lembrou que passaram a tarde cantando velhos sambas-canções e escrevendo poemas, o combustível: um conhaque caseiro que a velha Janúaria produzia numa destilaria fedorenta não muito longe dali e que sempre resulta numa diarréia incendiária e uma coceira anal violenta. Gerson contou também que certa altura Eusébio apareceu oferecerecendo bebida em troca de um pouco de trabalho braçal e que mesmo sabendo que seria para o Sete Gangas, Carlos prontamente aceitou - Gérson, mesmo em grande porre, não ousaria se meter com o famigerado terreiro. Assim, Eusébio e Carlos seguiram para o Galo Fêmea. Edér, o balconista, seria o próximo a ser interrogado.

16

Na porta do bar Carlos ameaçou perguntar se fora o enorme tição que lhe desovara no terreno baldio, mas a coragem não veio. Ainda era difícil tocar em assunto tão desgraçado. Carlos sabia dos perigos da raiva e da leptospirose que o cercavam  até HIV achava que poderia ter contraído. Entraram sem cerimônia em busca de Gérson e, como é só pensar no diabo que ele mostra o rabo, lá estava ele, sentado com olhos esbugalhados, cenho enrugado e o cheiro de desinfetante que lhe era peculiar. Carlos ficou feliz de vê-lo ali, pois não sabia o que a noite passada havia reservado ao amigo. Estava catatônico. "Gerson!", gritou. Ele levantou a cabeça incrédulo. "Tinha certeza que estava morto, seu biltre!".

15

Enquanto seguiam ao Galo Femêa algo muito estranho acontecia.
Na fazendinha de Eusébio, os animais estavam ouriçados e barulhentos, como se prevessem o mal que estaria por vir. Uma velha coruja-das-torres, ave das mais agourentas, deu seu último pio e morreu. O mais sinistro é que permaneceu empoleirada e de olhos abertos, como uma múmia de rapina.
A propriedade de Eusébio fica um tanto afastada do pequeno centro urbano. Um sítio próspero e muito limpo, apesar das centenas - talvez até milhares de animais que lá habitam. Um enorme pomar e um pequeno lago lamacento, onde ele costuma nadar nu. O descomunal crioulo vivia muito bem. Seguindo pela mesma estrada, que é de barro puro e poeirento, chega-se à enorme propriedade dos pais-de-santo: o Terreiro Sete Gangas. Um grande templo que mistura as mais diferentes vertentes espíritas. Lá pode se mexer desde as mais leves das religiões afro até as mais ocultas. Sabe-se também, que nos domínios do Gangas há altares para Asmodeo e recitais do capa preta de São Cipriano, enfim, um pessoal que jamais deve-se arrumar encrenca. Carlos peidava fino somente em pensar nos terríveis cramunhões engarrafados que lá eram criados. Por sorte, Eusébio parecia estar do seu lado na confusão com o Gangas, e nesse momento delicado, o cético negrão é um bom aliado. As contas entre os dois poderiam ser acertadas com trabalho ou favores sexuais, neste quesito, Carlos não se importava, desde que se livrasse dos mestiços do Gangas.

domingo, 11 de janeiro de 2009

14

Eusébio, alheio ao que a aparência poderia sugerir, tratava-se de um sujeito sensato e dono de uma voz doce. Carlos pediu para se vestir e ouviu um "fique à vontade" do gigante. Meio sem jeito, desenrolou-se da toalha pensando se, além de gostar de aves e cabeças de bode, Eusébio curtia um homem branco de pele castigada pelo sol. Veste bermuda jeans e uma camiseta branca ao mesmo tempo em que percebe que Eusébio traz um saco consigo. Ao notar a curiosidade de Carlos, o gigante revela: "é uma encomenda". Carlos então imaginou que os pais-de-santo haviam amaldiçoado Eusébio e, por tabela, a desgraça cairia sobre sua cabeça. E isso, sem dúvida, era a maior desgraça que poderia acontecer.

13

"Temos contas a acertar", disse o gigante que tinha o rosto todo talhado por centenas de pequenas cicatrizes e um olho de vidro. Diziam por aí que fora atacado por dezenas de quero-queros numa caçada e quase faleceu. Eusébio, este era seu nome, explicou que na noite anterior financiou rodadas de um rum venenoso e que, em troca, Carlos o ajudaria com uma entrega de animais madrugada adentro. Um terreiro da região havia encomendado cerca de 50 bichos, entre galinhas, pombos e coelhos, mas de alguma forma nosso herói escapuliu da obrigação, deixando Eusébio na mão dos os terríveis pais-de-santo. Assombrado, Carlos imaginou o quanto havia bebido para tamanha amnésia. Sugeriu em irem ao Galo Fêmea, palco do acerto entre os dois. A esta hora já estaria aberto e os bebuns da noite anterior com certeza lá estariam e testemunhariam, a seu favor ou não.

12

Carlos sai do banho enrolado em sua toalha grená. Só agora percebe os diversos focos de dor espalhados por seu corpo. Dói tudo. Prefere não perguntar "quem é?", então simplesmente gira a maçaneta e dá de cara com um enorme homem de ascendência africana que reconhece prontamente! É o sujeito que vende animais silvestres, principalmente aves, na região. Ficou famoso quando andou pelo bairro com um pavão macho na coleira. Nunca haviam trocado uma palavra.

11

Notou um vulto o espreitando na penumbra do corredor sem eletricidade. Estremecido, esperou um golpe pelas costas e enfim morreria, livrando-se desta loucura. Mas nada acontece e Carlos, finalmente, está em casa. Tirou os trapos que restaram de seu shorts e camiseta e foi direto para o chuveiro, ligou e, assim que a água marrom inicial se tornou limpa, entrou de uma vez na ducha geladíssima, deu um berro e assim começou a se lavar. Alguém bate na porta.

10

Espantou o bicho e notou uma caixa d'água no meio do matagal. Quebrou a tampa e se limpou rapidamente, antes que alguém atirasse com uma espingarda no seu cu. Voltou para o meio-fio e disparou. O vento que batia contra o rosto o aliviava e fazia lembrar-se que estava vivo. Dali a pouco o sol iria rachar a cabeça de todos. Quando chegou ao bairro, foi ao bar da Vilma para pindurar um pouco de pão e conhaque, mas o estabelecimento ainda não estava aberto. "Hoje é domingo", pensou. Foi ao seu prédio e caminhou pelo corredor até o seu apartamento. Quando girou a chave na fechadura, percebeu que não estava só.

sábado, 10 de janeiro de 2009

9

Ignorou a fome e os ferimentos – corria como o maior dos bastardos. No entanto, à medida que o centro se aproximava, Carlos sentiu uma erupção plutônica em seu ventre que o obrigou a parar. A merda fervente já lhe escorria pelas coxas quando botou-se de cócoras e obrou a massa fecal na beira da estrada. "Morfético! Vá cagar na puta que o pariu!", gritou um caminhoneiro bigodudo ao tirar uma fina do pobre diabo. Antes que o ato intestinal se encerrasse, o mesmo urubu atrasado se empoleirou na cabeça do infeliz. Grotesco.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

8

Olhou a redor e percebeu que não precisava mais daquilo. Deixou a piranha e saiu correndo rumo ao centro. Estava na hora de falar com Gérson, de ir ao bar Galo Fêmea e arrancar detalhes da noite com Éder, que lhe servira a cachaça batizada com danação. Antes, porém, era melhor passar em seu quarto alugado e tomar um banho gelado que o livraria das pestilências do terreno baldio. A imagem de ratazanas andando sobre o seu corpo não lhe saia da cabeça. Enquanto corria ainda ouviu a voz da puta: "volte aqui seu filho de quenga!”

7


Nesse instante investigou sua chave e papéis. A chave, sabia muito bem para o que servia e agradeceu por não ter-la perdido, já os papéis... Um telefone desconhecido, sem identificação; um verso de um poema inacabado que o fez recordar do litro de querosene que dividiu com seu colega Gérson na tarde anterior. Antes que pudesse ler o terceiro papel, a voz demoníaca da mulata invade a investigação: "chupador de cacete, me dá atenção!" O linguajar da mulher fez Carlos ter a certeza de que era uma puta, das mais fedorentas... Se não lembrava-se dela, não valia a pena saber por que a canalha o conhecia.

6

Levanta-se e ganha um abraço apertado, mas não consegue parar de pensar que não passa de uma broaca. Imaginou-se desembainhando a vara ali mesmo, mas a tensão que mantém seu corpo enrijecido o impediria de ter uma ereção. A mulher se pôs a falar como uma maritaca esclerosada, o que atingiu a têmpora de nosso herói transformando-se em uma dor-de-cabeça insuportável. E com ela, como que num espasmo, lembranças da noite passada surgiram na mente de Carlos.

5

A ave era negra como a noite, seus pequenos olhos sanguinolentos fitavam aquela decrépita figura, que cambaleante, finalmente conseguiu se levantar - mesmo o comedor de carniça dos céus parecia ter asco do infeliz. Naquela situação, nosso herói logo imaginou um bom assado do animal, acompanhado de meia dúzia de geladas, sua divagação é interrompida pela voz afônica da mulher: "Então está vivo? Me abraça, filho da puta".


quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

4

Já pensava em ir à praia para dar um mergulho e fingir ser mendigo em troca de água e frutos do mar, mas avistou uma garota que se aproximava. "Pra estar nessa área, deve ser puta", pensou. A mulata chegou perto e gritou o nome do pobre diabo em voz alta, feliz da vida que ele estava ali. Podia ser uma personagem da noite anterior aparecendo repentinamente. Quando ele ameaçou levantar, um atrasado urubu pousou ao seu lado, como se estivesse interessado nos piolhos de sua cabeça.

3

Quando atingiu uma boa distância da terrível vala de sangue e fedor, parou. A primeira tragada de oxigênio puro reconfortou seus pulmões enfraquecidos e assim se jogou à sombra de uma árvore. Antes de qualquer coisa, precisava de água e respostas, seu corpo deu a primeira, vomitou um misto de sangue e bílis. Não recorda a ultima vez que seu estomago recebia algo sólido. Exausto, questionou a ausência de urubus naquele mar de carne estragada.

2

Nunca havia estado naquele local. Nunca sentira aquele fedor matinal, quando os primeiros raios de sol tocam a podridão e faz ascender, claudicante, o cheiro da morte. Enquanto corria tentava se lembrar do que poderia ter o levado até ali. Provavelmente mastigara comprimidos a seco, batizando o estômago cheio de álcool barato. A chave ainda estava no bolso, junto com alguns papéis dobrados que poderiam dar dicas de como fora parar ali naquele inferno a céu aberto. Porém, mais do que isso, lhe intrigava saber como atingira um estado tão lamentável a ponto de ser dado como falecido.

1

Acordou. Não sabia onde estava. Antes de despertar, seria facilmente confundido com as carcaças que jaziam à sua volta. Fora jogado em um terreno de desova. Levantou-se, a ressaca impediu-lhe de sentir o cheiro putrefato dos cadáveres em decomposição. Com a garganta cheia de sangue e os olhos doendo, espantou as milhares de moscas que davam rasantes, entravam em sua boca e ouvidos, embaraçavam-se nos seus cabelos. Saiu correndo por um matagal refazendo os passos da última noite.

1° Texto


Carlos, o Pobre Diabo



Por Victor Hollanda e Tom Bolívar